O setor supermercadista brasileiro se vê diante de uma revolução demográfica sem precedentes. Para compreender melhor essa transformação, conversamos com Fernando Gibotti, um especialista com 30 anos de experiência no setor e CEO de CRM & Ciência do Consumo da Rock Encantech. Ele possui um PhD em Computação Aplicada e uma bagagem extensa em projetos voltados para o varejo.
Gibotti afirma que o país está atravessando um marco significativo. “O Brasil está passando pelo maior advento social no último século, denominado como a Era da Transformação Demográfica”, explica.
População menor
O especialista detalha uma queda na Taxa Geométrica de Crescimento Anual (TGCA). Nos anos 80, essa taxa era de 2,4% ao ano; hoje, é de apenas 0,6% e chegará a 0 em 2030. “A partir de 2040 começará a perder população. Naturalmente, se não há crescimento populacional, não existe crescimento de demanda por produtos e serviços”, contextualiza.
Famílias menores
Outro fator de análise são as mudanças no tamanho das famílias. Nos anos 80, as famílias brasileiras tinham, em média, 4,3 integrantes. Atualmente, essa média caiu para cerca de 2,8. Projeções apontam que esse número seja ainda menor, cerca de 2,6, até 2030. Essa mudança ilustra a tendência de formação de famílias mais nucleares, o que também impacta diretamente o consumo.
“As famílias sem filhos têm um comportamento de consumo bem diferente da chamada ‘família tradicional’. Os casais sem filhos tendem a comer mais vezes fora do domicílio, além de terem investimentos maiores em estilo de vida e entretenimento”.
Gibotti acrescenta que com domicílios menores, tanto do ponto de vista de pessoas quanto do tamanho físico, observa-se uma queda em compras de abastecimento e um aumento em compras de conveniência e emergência. “De forma geral, podemos apontar uma tendência de mudança de comportamento de consumo no que diz respeito às categorias, missões de compra e também o fortalecimento das compras online, principalmente em plataformas”, complementa.
Menos bebês e crianças
Gibotti também aponta queda na taxa de nascimentos – nos últimos dez anos, houve uma redução de aproximadamente 8%. “Com cada vez menos bebês, consequentemente teremos menos crianças nos próximos anos”, afirma.
Envelhecimento da população
Além disso, o especialista observa o envelhecimento da população. Previsões indicam que, até 2030, teremos 8 milhões a menos de crianças e jovens entre 0 e 14 anos, enquanto o número de brasileiros com mais de 60 anos aumentará em 21 milhões. “Com famílias menores e com pessoas mais idosas, o volume de produtos consumidos, em todas as categorias, diminui sensivelmente”, pontua Gibotti.
O especialista destaca que as pessoas, tanto as mais jovens quanto as mais idosas, estão cada vez mais preocupadas com a saúde e o bem estar, o que leva à mudança de quais itens devem fazer parte da cesta de compras. “Há um movimento importante sobre a conscientização da relação entre obesidade e saúde e, com a chegada de medicamentos poderosos para o combate à obesidade em nosso país, também há mudança no consumo de produtos alimentares”, acrescenta.
Mais pets por domicílio
O crescente número de pets nas residências também merece destaque. Atualmente, a média é de mais de 2 pets por domicílio e, até 2030, podemos chegar a 3. “Antigamente, os pets eram apenas animais de estimação, mas agora muitos os consideram como membros da família”, explica Gibotti.
Famílias endividadas
O impacto econômico no cotidiano das famílias também não pode ser ignorado. “Mais de 70% das famílias brasileiras estão endividadas. Além disso, o crescimento dos jogos online tira uma parte significativa do poder de compra dessas famílias”, observa.
Como se adaptar às mudanças
As mudanças demográficas exigem que o setor supermercadista repense suas estratégias, buscando se manter relevante nesse novo contexto. Os principais desafios estão na capacidade de compreender essa transformação e se adaptar à nova realidade.
Segundo Gibotti, essa adaptação deverá ocorrer em diferentes aspectos:
1 – Adaptação de produtos para pessoas mais preocupadas com a saúde e bem estar e com idade mais avançada.
2 – Adaptação no tamanho das embalagens, pois lares menores demandam menores quantidades de produtos.
3 – Adaptação no espaço físico da loja, pois à medida que as pessoas envelhecem, elas enfrentam mais dificuldades de locomoção. Dessa forma, centenas ou milhares de metros para efetuar as compras não será uma boa ideia.
4 – Adaptação do atendimento, primeiro abrindo oportunidades de trabalho para pessoas com 60+ e a capacitação dos demais colaboradores para atender esse novo público.
Para Gibotti, a adaptação depende essencialmente da capacidade de observar essa transformação demográfica e da velocidade em tomar decisões para se alinhar ao novo cenário que está se formando. “Dessa forma, investimentos em conhecimento do cliente (como a implantação de CRM) e ciência do consumo são fundamentais para compreender o comportamento dos clientes que estão nas áreas de influência das lojas”, sugere.
A inteligência artificial terá um papel significativo para auxiliar na execução de tarefas operacionais (como a prevenção de perdas) e estratégicas (como a análise de clusters para hipersegmentação e hiperpersonalização de conteúdos para clientes). “A IA deverá executar mais tarefas cotidianas para que os colaboradores tenham tempo suficiente para executar a tarefa mais nobre de um varejo: se relacionar e atender com excelência seus clientes”, ressalta Gibotti.
O especialista afirma que tanto a indústria quanto o varejo deverão estar atentos às transformações estruturais e conceituais da sociedade que geram grandes oportunidades para a introdução de novas categorias, novos produtos e novos serviços. “Existirão oportunidades para compras assistidas, diminuição real do sacrifício na jornada de compras e crescimento das compras online, principalmente pelas plataformas”.
Um exemplo interessante sobre as oportunidades está na indústria de produtos de limpeza e manutenção do lar, que atenta à crescente demanda em função dos pets, lançou novos SKUs focados em lares com animais de estimação – nos últimos 4 anos, a venda de produtos pet em lojas de supermercados cresceu 34%. Outro exemplo foi o crescimento de 30% nas vendas de pratos prontos para o consumo no público 60+.
Neste contexto de criar melhores oportunidades para os shoppers, Gibotti acredita no fortalecimento da relação indústria e varejo para elevar as vendas para ambos, aumentar o market share para a indústria e a margem para o varejista. “Os JBPs ou JVCs desenvolvidos com base no potencial de faturamento de cada loja, considerando suas áreas de influência e concorrentes (utilizando a ciência do consumo), terão mais assertividade e trarão resultados positivos para ambos. Um ponto que precisamos reforçar é que cada vez mais a indústria (que tem objetivos de curto prazo) e o varejo (que tem objetivos de médio e longo prazo) precisam alinhar esses objetivos para que todos evoluam”, explica.
Recursos Humanos X Mudanças Demográficas
Atualmente, os dois principais ativos do varejo alimentar e farmacêutico são as pessoas (clientes e colaboradores) e os dados (que permitem conhecer profundamente as pessoas e a partir de então melhorar o relacionamento para gerar engajamento).
Com relação aos colaboradores, Gibotti destaca dois principais prismas de atenção:
1 – A escassez de mão de obra, que foi acelerada nos últimos anos;
2 – A preparação dos colaboradores para poderem atender pessoas que estão cada vez mais ansiosas e solitárias. O envelhecimento da população, acentuado por mais mulheres idosas do que homens, está gerando uma grande quantidade de pessoas (prioritariamente mulheres) que vivem sozinhas em seus lares.
“Para suprir as necessidades de escassez de mão de obra, o varejo poderá contar com a mão de obra de pessoas com maior idade, atualmente não aproveitada nas atividades cotidianas das lojas. Sobre o prisma dos clientes, esses idosos necessitam de um cuidado adicional quando estão executando suas necessidades de consumo. Seja para auxilio na escolha e definição de produtos, seja para auxiliar durante toda a jornada de compra. A qualificação dos colaboradores para essa atenção especial será o grande diferencial para o sucesso do varejo nos próximos anos”, reflete o especialista.
Ele acrescenta que o futuro é desafiador, mas com grandes oportunidades de médio e longo prazo. “Embora as compras online por plataformas estejam ocupando um espaço importante no consumo domiciliar, as lojas físicas que realmente conhecerem e se relacionarem com seus clientes e que oferecerem encantamento à todos os frequentadores continuarão firmes e crescendo de forma sustentável. As redes regionais terão grande vantagem nos próximos anos pois essas possuem a capacidade de operar de forma mais customizada de acordo com suas áreas de influência”, prevê.
Dicas do especialista para o futuro do varejo
“O principal conselho que tenho para os líderes varejistas é que os dados gerados por suas lojas valem ouro! E, se valem ouro, não podem ser entregues para absolutamente ninguém.
Por trás de cada dado existe uma pessoa, um momento de vida, uma história e uma necessidade. Ter a plena compreensão disso colocará seu varejo em grande vantagem competitiva.
Cada vez mais os varejistas estão utilizando os dados para melhorar suas estratégias e, mais recentemente, estão gerando novas linhas de receitas sobre esses dados. Somados à capacidade de ativação de cada cliente individualmente, os dados criam uma audiência extremamente qualificada e com alto valor para o varejo, para a indústria e para as instituições financeiras.
O segundo conselho é que devemos utilizar a tecnologia para melhorar efetivamente o relacionamento e não apenas para dar descontos. Muitas vezes a necessidade de um determinado cliente passa longe de preços diferenciados.
E, finalmente, criamos tecnologia para servir às pessoas e não para substituir relacionamentos. Assim, devemos usar a combinação de tecnologia + dados para humanizar as relações e não para mecanizá-las. Precisamos, cada vez mais, utilizar a tecnologia para fortalecer as conexões humanas”, aconselha.
Fernando Gibotti é PhD, CEO de CRM & Ciência do Consumo da Rock Encantech
– Doutor em Computação Aplicada – INPE
– Especialista em Ontology Engineering – University of Münster – Germany
– Especialista em Geographic Information Technologies – Universitat Jaume I – España
– Mestre em Engenharia Urbana – UFSCar
Atuou como Coordenador em projetos de CRM, Ciência do Consumo e Inteligência de Dados em grandes empresas do varejo e da indústria nacional (Assaí Atacadista, BH Supermercados, Pernambucanas, D’avó Supermercados, JBS/Friboi, Cadbury Adams, etc). Em 30 anos de carreira foi responsavel por projetos de TI em empresas como Caixa, Bradesco e Gol Linhas Aéreas.
Foi projetista e desenvolvedor do projeto ACE-GIS (Adaptable and Composable, E-commerce and Geographic Information Services), financiado pela Comunidade Europeia.